Na Bahia, comunidades temem ruptura de barragem de rejeitos de mineração de ouro

Na Chapada Diamantina, os antigos garimpeiros associavam as pedras preciosas aos astros. Para cada ponto luminoso no céu, haveria um diamante sob o solo. Em Jacobina (BA), o garimpo artesanal foi substituído pela produção industrial do minério e a lenda cedeu lugar a uma narrativa sem nenhum encantamento.
Há quase três décadas, os moradores de Canavieiras, Jabuticaba e Itapicuru, na zona rural do município, tiveram seu modo de vida tradicional alterado à medida que cresceu a exploração industrial do ouro. Na visão deles, quanto mais detonações e mais evidentes os rejeitos da exploração mineral, mais ouro e problemas ambientais se revelam na superfície.
Faça chuva ou faça sol, por volta das 23 horas, as três famílias que vivem na quase extinta comunidade de Canavieiras sentem os impactos das detonações nas minas que a Jacobina Mineração e Comércio (JMC) explora desde 2006. "A gente sente a terra tremer, a casa balança e está toda rachada", narra Tauan*, de 42 anos, que mora ao lado da barragem de rejeitos da empresa, mas prefere não ser identificado por temer represálias.
O relato se assemelha ao de uma área atingida por terremoto. Mas esse é só um dos temores dos jacobinenses.
Localizada a 420 km a oeste de Salvador, Jacobina abriga duas barragens de rejeitos resultante da exploração de ouro da empresa JMC, filial brasileira da canadense Yamana Gold Inc. Na região, a corporação estrangeira explora quatro minas: João Belo, Itapicuru, Serra do Córrego e Canavieiras, que, juntas, empregam ao menos 2 mil funcionários.
"Eu gosto de tranquilidade, do meio ambiente. Gosto de plantar e de criar uma galinha, só que, com o desenvolvimento da empresa [Yamana Gold], a comunidade não tem mais sido a mesma coisa", reclama o produtor rural Bonifácio*, de 37 anos, morador da comunidade de Jabuticaba, onde vivem 65 famílias.
A descoberta do minério se deu no século 18, atraindo moradores de fora para o garimpo artesanal. Com a chegada da filial da Yamana Gold, Jabuticaba e as demais comunidades perderam seus garimpos. A intensificação da produção industrial do ouro levou à criação da barragem de rejeitos B1, em fase de desativação desde 2008, e da barragem B2, atualmente em funcionamento. Esta última deve permanecer em atividade até 2036.
"O medo é acontecer um rompimento e ceifar centenas de vidas"
A barragem B2, que tem 88 metros de altura, está na Categoria de Risco (CRI) baixo para desabamento, conforme a lista de classificação de barragens de mineração brasileira, da Agência Nacional de Mineração (ANM). Mas tanto os moradores da cidade, especialmente nas três principais comunidades rurais, quanto o Ministério Público estadual alertam para o risco de uma tragédia sem precedentes.
As barragens podem ser classificadas quanto à Categoria de Risco (CRI) e o Dano Potencial Associado (DPA). A CRI diz respeito aos aspectos da própria barragem que possam influenciar na probabilidade de um acidente.
"A barragem de Jacobina é classificada como Dano Potencial Associado alto. Essa classificação não está relacionada à condição da barragem no momento. Ela leva em consideração apenas a hipótese de rompimento", explica o promotor Pablo Almeida.
A Promotoria Especializada em Meio Ambiente do Ministério Público da Bahia (MPBA) em Jacobina já identificou falhas na segurança da barragem. No dia 2 de dezembro do último ano, o desabamento de uma estrutura interna da barragem pôs em alerta a ANM e os promotores.
Segundo um documento da ANM ao qual a reportagem teve acesso, houve "ruptura parcial da pilha de rejeito ciclonado", causada provavelmente "por fortes chuvas e problemas de drenagem interna dessa estrutura", na barragem B2. Não houve vítimas, mas o material sólido soterrou um veículo da própria empresa.
No dia 4 de dezembro, a agência interditou e suspendeu de imediato o lançamento de rejeitos da B2. Para que a interdição fosse desfeita, a ANM recomendou que a JMC solucionasse os problemas apontados na inspeção realizada pelo Ministério Público da Bahia.
A Promotoria em Jacobina, representada pelo promotor regional ambiental Pablo Antônio Cordeiro de Almeida, requisitou à empresa que averiguasse a ruptura, "considerando inclusive soluções que reativem a drenagem interna (tapete drenante) dessa estrutura, mantendo-a segura, principalmente em relação a sua drenabilidade".
Essas ações garantiriam mais estabilidade aos rejeitos.
O promotor recomendou, ainda, que a empresa fizesse o "desassoreamento completo dos corta-rios das duas Barragens B1 e B2", o que favoreceria a drenagem e retoma o fluxo do rio.
Atualmente, o rio Cuiá, de maior volume, é de uso da JMC na mineração do ouro.
Em Canavieiras, onde mora Tauan, um possível rompimento causaria ainda mais problemas à comunidade. Ali havia 105 famílias, mas, após acordos de venda das casas com a empresa canadense a partir de 2011, a maioria deixou o local que está há poucos metros da B2.
Caso se rompesse, a B2 provocaria a destruição nas vias de acesso às outras comunidades, deixando isolado o povoado.
O pavor do rompimento coloca em suspenso as centenas de residentes de Itapicuru e Jabuticaba. Além deles, moradores de bairros da zona urbana de Jacobina temem um desastre, uma vez que estariam na rota da lama oriunda da barragem.
A cidade de Jacobina tem uma população estimada em 80.635 pessoas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É como se o município estivesse fadado ao ouro porque a economia gira em torno da exploração do minério. No último ano, a produção mineral comercializada do município de Jacobina, foi de R$134 milhões.
"O medo é, como teve em Brumadinho, em Mariana, acontecer um rompimento e ceifar centenas de vidas", diz Bonifácio.
Terremotos
Documentos da Promotoria Especializada em Meio Ambiente do MPBA informam que a B2 tem um método mais "seguro" de contenção, devido à sua construção a jusante. Isso significa que os rejeitos correriam para o lado da foz, no sentido das águas do rio, o que implicaria menor chance de infiltração dos rejeitos nas paredes das barragens.
Além disso, a empresa alegara que a barragem é resistente a atividades sísmicas.
No entanto, em abril de 2019 a mesma Promotoria do MPBA alertou que "estudos da empresa apontavam equivocadamente Jacobina como área assísmica".
Pelo contrário. Na verdade, um monitoramento feito pelo Laboratório Sismológico (LabSis) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) registrou ao menos dez tremores de terra na região de Jacobina entre 9 de dezembro de 2020 e 6 de fevereiro deste ano.
Em Canavieiras e Itapicuru, os tremores não foram sentidos diretamente, mas, antes que os relatos fossem noticiados na imprensa local, ouviu-se um forte estrondo vindo da mineradora.
"Foram identificados problemas graves, desde informação falsa, operação da barragem em desacordo com recomendação de segurança dos auditores da própria empresa e não monitoramento adequado de fatores de liquefação", informou um documento da Promotoria publicado no dia 10 de dezembro.
O órgão aponta que abalos sísmicos e tremores de terra estão entre os "gatilhos" para a liquefação da barragem.
Na liquefação, o fluxo de água na barragem anula o peso e a aderência dos materiais rígidos e faz com que eles fiquem soltos, isto é, fluidos. Sem a drenagem correta, a lama tende a escorrer.
Segundo o MPBA, a B2 também está sujeita a acidentes ou ao rompimento, caso haja alteamento muito rápido dos rejeitos. A quantidade de água na barragem, em desacordo com recomendações de segurança, também é motivo de preocupação para os moradores.
Por esse motivo, Tauan teme os dias chuvosos na comunidade onde mora.
Simulação de rompimento
Foi por isso que moradores, como Tauan, decidiram se organizar e pedir providências ao Ministério Público.
Na manhã de 22 de fevereiro de 2019, após pressão da comunidade e de movimentos sociais, com apoio do Ministério Público e de autoridades baianas, a JMC fez uma simulação de rompimento da barragem, com a parceria entre a Defesa Civil de Jacobina e a do estado para "preparar os moradores e equipes de atendimento para emergências, com base na cultura de prevenção a acidentes da empresa".
Previsto na Política Nacional de Segurança de Barragens, o Plano de Segurança da Barragem da Yamana inclui uma Zona de Autossalvamento (ZAS) de 10 quilômetros após o empreendimento, "sendo que nos sete quilômetros iniciais existe um maior risco para vidas humanas, já que a velocidade da onda de lama pode chegar a dez ou vinte quilômetros por hora", segundo o MPBA.
Cerca de 400 moradores das comunidades de Canavieiras, Jabuticaba e Pontilhão – outra que estaria na rota da lama – participaram do simulado inédito. Todos os moradores foram identificados pela empresa; dessa forma, há maior chance de atendimento em uma possível pós-tragédia.
O povoado de Itapicuru não foi convidado. "Segundo eles, Itapicuru não vai ser atingida", afirma Claudiana Pereira, a Cota, de 36 anos, uma liderança da comunidade onde vivem 82 famílias, algo em torno de 350 pessoas.
O teste de autossalvamento recebe esse nome porque a própria pessoa deve providenciar o seu socorro. Em tese, não haveria tempo para nenhum órgão público realizar o salvamento e, por isso, caberia a cada pessoa encontrar um local seguro. Há duas zonas de autossalvamento em Jacobina, a zona 1, com mais de 800 pessoas, e a zona 2, com mais de 2.400 pessoas. Na zona 1 há crianças, idosos e pessoas com alguma deficiência.
Às 9h05, a sirene da Yamana Gold tocou e os moradores deixaram as suas casas. Depois, seguiram até um ponto alto na zona urbana da cidade de Jacobina, onde estariam fora de perigo em caso de rompimento da barragem.
"Para a engenharia, não existe obra 100% segura. Se acontecer da barragem estourar, por qualquer acidente ou crime, o dano potencial é grande porque a cidade cresce em cima dessa mancha de inundação", afirma Almacks Silva. Especialista em gestão de bacias hidrográficas e saneamento básico, ele é tecnólogo em gestão ambiental e membro titular da Câmara Técnica de Segurança de Barragens do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH).
Comoção por Mariana levou à mobilização
Se uma pessoa sair do centro de Jacobina em direção à zona rural, depois de passar por Canavieiras, estará a caminho de Itapicuru. Nessa comunidade, a protagonista na luta contra a pressão exercida pela atividade mineradora é Claudiana Pereira, a Cota.
Desde 2011, ela tem participado de reuniões com representantes da JMC. Ela discursou em pelo menos três sessões na Câmara de Vereadores e esteve numa histórica audiência pública, em 2018, promovida pelo Ministério Público em Jacobina, em que está à frente o promotor Pablo Almeida.
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