ACRE: celebração indígena corta o silêncio da floresta e tenta despertar o mundo
Estamos reunidos esta
semana na aldeia Mutum, Terra Indígena do Rio Gregório, nas florestas do
município de Tarauacá (AC), para celebrar a cultura do mariri yawanawa.
É um encontro onde a magia e a beleza de um povo rompem o silêncio da
floresta para entoar aos quatro cantos da terra a força de nossa
tradição.
Isso me faz voltar no
tempo, não muito tempo atrás, após morar e estudar nos Estados Unidos
por cinco anos, quando retornei, em 2001, trazendo na bagagem muitos
sonhos, entre os quais o de fortalecer a cultura e a espiritualidade
yawanawa, o que parecia uma utopia naquele tempo.
Tinha sido convidado
pelo meu povo para liderá-lo, em uma época onde a cultura,
espiritualidade e as manifestações do yawanawa estavam sendo
enfraquecidas e quase sendo esquecidas.
Os velhos sábios, pajés e
doutores do conhecimento tradicional yawanawá, como Tuin Kuru, meu pai,
estavam esquecidos pelos jovens, muitos acreditando que a "cultura da
cidade” era melhor do que a de nosso povo. Eles só queriam saber de ir
para Tarauaca (AC), para dançar forró, beber, e virar nawas (brancos).
Chegando na aldeia,
chamei todos os velhos sábios para me aconselhar e lhes pedi que me
ensinassem como liderar nosso povo. Na ocasião, foi realizada uma grande
assembleia que durou três dias, quando houve uma profunda reflexão
sobre a situação do povo yawanawa no passado, no presente e como
gostaríamos de ser no futuro.
Tive essa inspiração ao
vivenciar uma longa jornada espiritual com os povos indígenas do Canada,
Estados Unidos, México, Venezuela, como os Tepehuanos, Raramuri,
Panare, Piaroa, que lutavam para seguir preservando seu conhecimento
tradicional, mesmo que para o modelo de desenvolvimento econômico
capitalista pudesse representar um obstáculo.
Aquelas comunidades, por
semanas, realizavam cerimônias, onde todos ficavam em jejum vários
dias, antes de beber a bebida sagrada e dançar durante a noite de lua
cheia. No caso do México, era o Jikuri, no caso dos Piaroa era o que
chamavam de Yopo, em busca da revitalização da cultura e da
espiritualidade.
Então propus iniciar uma
nova era de trabalhos com a celebração de cinco dias praticando nossas
manifestações culturais e espirituais, dançando, brincando, bebendo uni
(ayhauasca). Nessa época, as únicas pessoas que sabiam, que guardavam o
conhecimento de como eram essas manifestações culturais do povo
yawanawa, era Tuin Kuru, Tatá, Yawarani e dona Nega. No entanto, Tuin
Kuru, era o que mais conhecia as expressões artísticas e as
manifestações culturais.
Raimundo Luis Tuinkuru
foi um visionário que trabalhou arduamente até os últimos dias de sua
vida em repassar para seu povo todo o seu conhecimento da cosmologia
yawanawa. Dedicou sua vida para que a arte, a cultural material, o
canto, a dança, a manifestação cultural e espiritual yawanawa não
desaparecessem com o tempo, mas para que ela estivesse sempre na vida de
cada membro de seu povo.
Mesmo vivendo num mundo
globalizado, era seu desejo que o povo yawanawa não perdesse sua conexão
com o mundo espiritual, de onde viemos e que, através da arte e da
manifestação cultural e espiritual, pudéssemos alegrar nossos espíritos e
afastar o mal. Em vida, Tuinkuru trabalhou arduamente para que o povo
yawanawa não perdesse seus costumes tradicionais como a língua, as
manifestações culturais e espirituais.
Costumava despertar
quando o dia ainda estava clareando e chamava os filhos, os genros, as
mulheres, as crianças, para ouvirem seus conselhos sobre como lidar com a
vida. Discorria sobre um conto para depois tirar moral da historia e
usar como uma lição de vida. Pela manhã, chamava as pessoas para tomar
caiçuma e aconselhava a todos sobre moral e virtudes para viverem bem na
terra.
Para Tuinkuru, qualquer
lugar, era uma sala de aula. Até mesmo a beira de um lago, durante uma
pescaria comunitária, servia como palco para ele disseminar o
conhecimento tradicional yawanawa. Ainda jovem, aprendeu com seu tio que
cada lugar da floresta tem um dono. Se o dono daquele lugar for uma
pessoa boa, facilmente encontravam-se frutas, caças e madeiras. Porém,
caso o dono fosse miserável, o lugar seria hostil e não produzia nada,
pois ele não dava nada a ninguém.
Tuinkuru era um sábio,
um filósofo da floresta, um líder, um visionário, que amava as pessoas
incondicionalmente. O seu grande conhecimento da cosmologia yawanawa era
tão vasto que era capaz de explicar com detalhes e argumentação sobre
qualquer tema e, depois de finalizar sua explicação, deixar qualquer
pessoa com a sensação de ter tido uma grande lição de vida.
Foi um grande contador
de historias, mas não contava apenas por contar. Ele enfatizava e
buscava as ligações que a história tinha com o mundo em que vivemos,
contava com a arte de contar. Mesmo que uma historia fosse aborrecida,
ele a transformava numa história atrativa e doce aos ouvidos de quem
tivesse ao seu redor.
Tuinkuru atuava,
gesticulava e não deixava ninguém sair do círculo sem que tivesse
entendido o moral da história que certamente lhe serviria algum dia na
vida. Nunca passava despercebido. Sua notável presença se dava sempre
pela forte liderança que sempre exerceu durante sua vida. Ele se dispôs a
compartilhar seu conhecimento para essa grande celebração acontecer.
Naquele tempo, os jovens yawanawa não conheciam como se fazia muitas de
suas brincadeiras. Conheciam apenas poucos cantos. As pinturas faciais e
corporais eram simples e pouco variadas.
Todo o povo se animou e,
em poucas semanas, se organizou o I Festival de Manifestações e
Tradições do Povo Yawanawa, que ocorreu em 2002, com o único propósito
de ser uma festa da própria comunidade, onde se manifestariam as
cerimônias, brincadeiras que não eram praticadas há muito tempo.
Foram cinco dias sem
parar, dia e de noite, como uma programação organizada e dirigida pelo
Tuin Kuru. Foi inesquecível o dia em que todas as mulheres, homens,
velhos, crianças apareceram vestidos tradicionalmente, pintados,
cantando como se fosse antes da chegada do homem branco.
Tuin Kuru, com lagrimas
nos olhos, falou que apenas nos sonhos veria nosso povo daquela maneira e
que agora ele podia morrer feliz. Ele falou que já fazia mais de 70
anos que muitas das cerimônias não eram praticadas.
Para essa celebração, os
únicos nawas (brancos) amigos que foram convidados foram o Josh Sage e
seu irmão Jade Thomas, para registrar e tornar realidade um antigo
sonho, de produzir um documentário sobre nosso povo.
O documentario, com
apoio da empresa Aveda Corporation Inc., foi produzido em 2003, com o
titulo “Yawa – a história do Povo Yawanawa". O primeiro filme sobre o
povo Yawanawa originalmente narrado na língua Yawanawa, pelo pajé Tata, e
traduzido para nove línguas (português, espanhol, inglês, coreano,
alemão, italiano, francês… ), foi dirigido e co-produzido por mim.
A partir daquele
importante evento, veio o “renascimento” do povo yawanawá, onde a
cultura começou a ser valorizada por sua população, sobretudo pelos
jovens que passaram a se sentir orgulhosos de pertencer ao povo
yawanawa. E começaram a ficar curiosos de saber mais sobre sua própria
espiritualidade e cultura. Os pajés, como Tata, se tornaram pessoas de
muito valor para os jovens por causa do conhecimento do qual eram
detentores.
Um exemplo foi Hushahu,
que era uma jovem que dava trabalho para nossos pais, e queria só saber
das coisas da “cidade.” Pouco depois, Hushahu foi a primeira jovem
mulher que teve a iniciativa de aprender com Tata e seu pai Tuin Kuru
sobre o xamanismo yawanawa e se tornou pajé também.
Depois de Tata e
Yawarani, não tinha mais nenhum pajé jovem que pudesse seguir liderando o
xamanismo na comunidade. Hushahu percebeu isso e sentiu que seu destino
era o de seguir o exemplo de Tata. As pessoas, sobretudo os homens da
aldeia, riram da iniciativa da Hushahu, pensando que, por ela ser uma
mulher, não poderia ser pajé, pois não conseguiria fazer os sacrifícios
que precisariam ser feitos, por um ano, pelo menos, para conseguir tal
objetivo.
Apesar de não ter
contado com o apoio da maioria, Hushahu perguntou para seu pai Tuin
Kuru, e ele, sabiamente, lhe respondeu que a espiritualidade yawanawa
não tinha nada a ver com o sexo (gênero), que o conhecimento vinha do
espírito e, que se ela tinha esse objetivo, fosse em frente, mais que
não brincasse, porque era uma coisa muito séria.
Foi aí que Tuin Kuru
conversou com Tata, o último dos pajés mais fortes yawanawa, para ser o
mestre de Hushahu durante um ano. Pouco depois, Hushahu foi seguida pela
Putani, sua irmã, que também quis se refugiar junto com ela na mata
para aprender e dominar o xamanismo com os mestres Tata e Tuin Kuru.
Ate agora, Hushahu foi a
única mulher jovem que realmente conseguiu ficar isolada na mata, em
dieta, estudando e aprendendo com Tata, sem sair, durante um ano, sem
beber água pura, açúcar, sal, comendo muito pouco, apenas para manter o
corpo vivo.
Basicamente, o alimento
consistia de 24 horas de uni (ayahuasca) e rapé (tabaco torrado). O
resultado foi incrível: Hushahu se transformou em uma mulher bela, forte
e respeitada pelos próprios homens que riram dela no início.
Durante esse tempo de
dieta, Hushahu recebeu fortes sonhos xamânicos, novos cantos, pinturas
corporais e faciais detalhadas e elaboradas, que atá agora são usadas
nos festivais yawanawa.
O sucesso de Hushahu
quebrou um tabu na tradição yawanawa, onde só aos homens era permitido
beber uni e estudar para ser pajé. Hushahu abriu o caminho para outros
jovens, incluindo mulheres, que quisessem seguir seu exemplo. Isso tudo
graças ao apoio e sabedoria dos velhos Tuin Kuru e Tata, mestres e
doutores do conhecimento tradicional.
Atualmente, Hushahu
continua estudando seriamente e praticando o xamanismo Yawanawa, cada
dia criando mais pinturas faciais/corporais usadas nas pulseiras feitas
de miçanga, pintando telas a partir de seus sonhos xamânicos e inovando a
arte yawanawa.
O festival, agora
conhecido como “Yawa", continua sem a orientação de Tuin Kuru e tem
alcançado seu verdadeiro propósito. Mas em todo processo de aprendizado
há sempre um ponto positivo e, bem ou mal, as novas gerações, aprenderam
que seu conhecimento tradicional é valioso.
Aprenderam que isso pode
se transformar em uma oportunidade para que mais jovens voltem a suas
raízes e se aprofundem na floresta junto com seus velhos sábios, em
busca do saber espiritual de seus ancestrais. E este saber deve ser
praticado de forma honesta e séria, para que possa contribuir para o
fortalecimento de uma cultura milenar.
O primeiro Festival
Yawanawa, tinha como objetivo fortalecer a cultura e espiritualidade
Yawanawa, mas com o tempo se tornou muito turístico e nós queremos
resgatar a essência da espiritualidade, fazendo reflexão interna, algo
mais intimo.
Por isso, até o dia 28
de julho estaremos dedicados à cura, dança, canto, manifestação cultural
e espiritual yawanawa na sua essência, na sua pureza, sem interferência
da cultura ocidentalizada, conforme a visão do líder Raimundo Tuin
Kuru.
O mariri, resgata e
fortalece a visão inicial do Yawa, de reunir os yawanawa durante uma
semana para celebrar a vida, pois, segundo nossa tradição, a nossa alma
sempre tem que esta alegre, se não ele volta.
Sentado numa rede, um
pajé reza toda a noite para curar uma pessoa enferma. Reza também para a
comunidade global viver saudável, em harmonia com as pessoas e o meio
ambiente em que vivem.
Num cantinho
despercebido da Amazônia brasileira, o povo yawanawa celebra uma semana
de dança, manifestação artística, cultural e espiritual num ato de
agradecimentos aos espíritos da floresta pelos bens que ela oferece.
A batida de mais de mil
pés, em ritmo de dança, levanta a poeira do terreiro, corta o silêncio
da floresta e desperta o mundo para suas origens.
É tempo de despertar,
encher nossas vidas de motivações positivas para resgatar nossos valores
étnicos e culturais, para não perdemos de vista o caminho de onde
viemos.
Hoje nossos velhos podem
dormir em paz, pois já cumpriram com sua missão. Nossa missão agora é
manter viva a memória de nosso povo, não deixar que a globalização mude
nossos costumes e nossa maneira de viver. Cuidar de nossos territórios
sagrados para que o verde da floresta de onde vivemos continue a
florescer ao amanhecer de cada dia. Cultivar nossas raízes, para que
tenhamos uma identidade, cultura e espiritualidade que assegure nossos
valores tradicionais. Enfim, que continuemos para sempre yawanawa, que
significa povo da queixada.
POR TASHKA YAWANAWA
Liderança da etnia yawanawa
Fonte: Blog da Amazônia
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