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Dorival Filho: Saí do lixão e hoje sou doutorando graças ao Bolsa Família


A história do mestre em linguística Dorival Filho, ex-catador cuja vida foi transformada pelo maior programa de transferência de renda do mundo

Por José Rezende Jr.

“Disputávamos a comida com os urubus e os cachorros famintos. No lixão, éramos uma coisa só: gente, cachorro, urubu. Todos lutando para sobreviver”
1986
Dorival tem 4 anos. Sob o olhar vigilante da mãe e das duas irmãs mais velhas (uma de 8, outra de 6 anos de idade), segura a mamadeira enquanto se equilibra sobre os sacos de plástico preto que formam a montanha gigante, centenas de vezes o seu tamanho. Ainda não conhece todas as coisas, mas logo aprende o outro nome do lugar onde passará grande parte da vida: garimpo.
Pelos muitos anos que virão, Dorival vai garimpar no lixo não apenas o alimento, mas também as roupas já muito usadas que vestem a família, os sapatos velhos, os brinquedos estropiados, os quadros que enfeitam as paredes da casa precária, os cadernos com páginas ainda em branco, os lápis de cor, as panelas amassadas onde a mãe cozinha o alimento que primeiro virou lixo para depois tornar a ser alimento, as cartelas de remédios para as infinitas dores e doenças – muitas delas contraídas no próprio lixão.

Com sorte, o mais jovem garimpeiro da comunidade do lixão de Piedade – cidade do interior paulista, a 100 km da capital mais rica do Brasil – ajudará a família a encontrar o metal mais valioso daquele pedaço de mundo. Nos dicionários e enciclopédias – que de vez em quando emergem dos sacos de lixo – esse metal tem o nome de cobre. Mas ali, no lixão, ele é chamado de ouro, uma vez que nenhum outro material reciclável atinge a mesma cotação: R$ 5,00 o quilo. Em segundo lugar na escala de preciosidade vem o metal que a norma culta chama de alumínio, mas que a variante da língua falada no garimpo decidiu rebatizar como prata. A prata vale metade do ouro: R$ 2,50 o quilo.
2015
Dorival completou 33 anos. Está sentado à sombra das árvores do campus da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde faz doutorado em linguística. Tem nas mãos o livro Do que é feito o pensamento – A linguagem como janela para a natureza humana, do psicólogo e linguista canadense (naturalizado estadunidense) Steven Pinker.

Com o Bolsa Família podíamos escolher a nossa alimentação. Comida boa, limpa, saudável
“No lixão, éramos todos falantes do português do Brasil, é claro, mas tínhamos uma variante própria da língua. Nós ressignificávamos algumas palavras, como garimpo, ouro e prata. Talvez porque elas simbolizassem a nossa riqueza”, conta o ex-catador que se tornou mestre e em breve receberá o diploma de doutor em linguística – graças ao Bolsa Família, que resgatou do garimpo Dorival e as duas irmãs mais velhas, e garantiu que os dois irmãos mais novos e os sete sobrinhos jamais precisassem disputar comida com os cães e os urubus.

O Verdadeiro ouro do lixão
Dorival chegou onde está graças ao programa de transferência de renda que ajudou a criar um terreno fértil de oportunidades, sobre o qual floresceram o talento e a perseverança – o mérito, pois – de milhões de filhos do Bolsa Família.

Graças também a dona Crélia, que lia para o filho os livros de contos de fadas garimpados na realidade dura do lixão. Dona Crélia só conseguiu estudar até a 4ª série, mas ensinou Dorival a ler e nele despertou o amor pelos livros.

E graças também, e muito, a outro material reciclável ao qual ninguém mais dava valor no garimpo, porque de fato não valia quase nada: o papel, matéria-prima que contava em silêncio as histórias bonitas dos livros. Os atravessadores pagavam aos garimpeiros R$ 0,01 pelo quilo de papel. Sim, apenas um centavo pelo quilo de histórias salvas do abandono e do esquecimento. Dorival até hoje não entende por que as pessoas jogam livros no lixo. “Para mim, é como jogar fora um amigo ou um membro da família”.

Ao longo dos anos, Dorival resgatou cerca de 3 mil livros, sozinho ou com a ajuda dos colegas de garimpo. Na chegada ao lixão, cada um informava aos outros o que precisava encontrar naquele dia: roupas de bebê para a filha grávida, sapatos para os netos irem à escola, um enfeitezinho qualquer para embelezar a casa. Dorival não precisava dizer o que queria. Todo livro achado no lixo ia parar em suas mãos.

No início eram as revistinhas em quadrinhos. Depois, os livros infantojuvenis da Coleção Vagalume, editados pela Ática a partir dos anos 1970. Com o tempo, foram emergindo do lixo as obras-primas de Graciliano Ramos, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Eça de Queiroz, Flaubert, Victor Hugo, Balzac, Tolstói... Dorival lia tudo, até o que não entendia. E relia, até um dia entender.
 
Como nasce o linguista
Desde pequeno, o menino queria saber a origem dos nomes das coisas. Por que a manga se chama manga? E por que a manga da camisa também se chama manga, se não tem nada a ver com a manga-fruta?

Estava ali o embrião do futuro linguista que, por muito tempo, desconheceria a existência de uma ciência chamada linguística. Até o dia em que encontrou no lixo um exemplar de Introdução aos estudos linguísticos, de Francisco da Silva Borba.

Não entendeu muito. Mas releu até descobrir o que queria ser quando crescesse. No futuro, se houvesse futuro, ia ser linguista, um pesquisador da linguagem.

O futuro chegou na forma do Bolsa Família, que ajudou a introduzir no dicionário político e social do Brasil uma palavra mágica: oportunidade.
 
O pescador e o peixe
Aos 4 anos, quando Dorival pisou pela primeira vez o lixão, ainda não pesava sobre as costas magras a responsabilidade de ajudar a família a comer. Ele então revirava os sacos de lixo em busca dos brinquedos que, de outro modo, jamais poderia ter. Vez em quando achava um carrinho, só que sem rodas. Aí, guardava o brinquedo incompleto e ia garimpando aos poucos as partes faltantes. Ficava bonito o carrinho, com uma roda de cada cor e tamanho.

Mas a partir dos 6 anos de idade, o que era diversão de criança pobre tornou-se luta de gente grande pela sobrevivência. Dorival passou a revirar o lixo em busca de comida, sapatos, material escolar, garrafas pet, alumínio, cobre. O lixão dava de quase tudo: até um vestido florido, que no passado fizera bonita alguma outra mulher, e agora virava um presente de aniversário para a mãe.

Dorival insistia em ir à escola. Mesmo que muitas vezes não conseguisse segurar o lápis, por causa dos cortes nos dedos, provocado pelos cacos de vidro, um dos perigos do lixão. Eram muitos os perigos: ser ferido por alguma agulha contaminada do hospital, ou soterrado pelo lixo, ou atropelado pelos caminhões que trafegavam a toda velocidade, os motoristas fingindo não ver os garimpeiros.

“Éramos invisíveis. Ninguém nos via. A sociedade não nos queria ver. Nem os motoristas dos caminhões de lixo, que não eram assim tão menos pobres do que nós. Era como se estivéssemos numa escala inferior de humanidade”, lembra.

Dorival sobrevivia. Ainda insistia com a escola, apesar dos dedos feridos e do apelido de “lixeiro” que recebeu dos outros alunos. Encharcava-se com restos de perfume garimpados no lixão, mas ainda assim os colegas tapavam o nariz quando ele chegava. O futuro linguista não conhecia a palavra bullying, mas sabia de cor as suas dores.

Resistiu até a 8ª série, quando não foi mais possível conciliar o lixão e a escola. Escolheu ajudar a família a viver. Tinha apenas 14 anos quando trocou em definitivo o lápis pelo cajado, instrumento de trabalho feito de cabo de vassoura, usado para descompactar e revirar o lixo. O cajado era apontado como se fosse um lápis – mas era justamente o oposto.
Dorival parecia condenado ao exílio perpétuo no lixão. Foram 11 anos dedicados exclusivamente ao garimpo, além de outros três de revezamento entre o lixão e a dura colheita sazonal de cebola, batata e morango em terras alheias.

Mas em 2003 o Brasil deixou de ser um país governado para poucos e aprendeu a conjugar desenvolvimento econômico com distribuição de renda e redução das desigualdades.

As duas irmãs mais velhas tornaram-se beneficiárias do Bolsa Família. O dinheiro era pouco: menos de R$ 100 por mês, juntando os benefícios das duas. Mas, somado ao que Dorival garimpava no lixo, provocou uma revolução.

“Antes do Bolsa Família, comíamos o que encontrávamos no lixão. De uma hora para outra, podíamos comprar, podíamos escolher nossa alimentação! Comida boa, limpa, saudável! Meus sobrinhos não precisavam mais esperar ansiosos pelos doces que eu catava no lixo”, conta.
A família já tinha o peixe. Dorival voltou a pescar o que mais amava: conhecimento.
 
De volta para o futuro
O primeiro passo rumo ao futuro foi de volta à escola. Em 2003, Dorival orgulhosamente matriculou-se no 1º ano do ensino médio. Era já um homem feito, com 21 anos de idade, cercado de colegas sete anos mais moços. Ainda não conseguiu abandonar o lixão de uma vez por todas, mas reduziu a jornada de trabalho no garimpo. Com a comida garantida na mesa da família, não precisava estar de pé às seis da manhã espreitando o primeiro caminhão de lixo e passar o dia inteiro à espera do último.

Entrada na Universidade foi meu ponto de ruptura. Naquele instante eu soube que nunca mais voltaria.

DORIVAL FILHO
Os três anos de ensino médio foram cumpridos com desempenho exemplar, apesar da meia jornada no lixão. Tão exemplar que uma professora incentivou: Você precisa tentar a universidade, o governo lançou o Prouni, tenho certeza que você passa no Enem e consegue bolsa numa boa faculdade particular.

Dorival foi realista e ousou o que seria impossível no Brasil de antes, quando o acesso ao ensino superior era privilégio de tão poucos. Estudou para o Enem e resolveu tentar também, por que não?, o vestibular da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Foi bem no vestibular para o curso de letras. Tão bem que entrou confiante na lan house, para conferir a relação dos aprovados. Começou pelos 90 nomes da lista de espera, correndo os olhos do último para o primeiro. O dele não estava lá. Passou então aos 90 aprovados, sempre de baixo para cima. No começo, que aliás era o fim da lista, nada. Mas bem no meio do caminho tinha um nome: Dorival Gonçalves dos Santos Filho.
“Foi meu ponto de ruptura. Naquele instante, soube que nunca voltaria ao lixão.”

E nunca mais voltou. Em 2006, aos 24 anos de idade, foi fazer graduação no campus da Unesp em Assis, cidade a 400 km de Piedade. O ensino era gratuito; o aluguel, as refeições, os livros didáticos, não. Conseguiu uma bolsa de auxílio, insuficiente para cobrir os gastos. As irmãs ajudaram com uma parte do pouco que recebiam do Bolsa Família, mas a conta ainda não fechava. Dorival dividiu então o dia em três turnos: de manhã, o trabalho na lavanderia; à tarde, a faculdade; à noite, a terceira jornada, agora como cuidador de idosos.

O ex-catador se formou em letras (licenciatura em português e francês) e começou a lecionar em escolas públicas. Mas queria mais. Fez o exame de seleção para o mestrado da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), estado para o qual a família havia se mudado. Aprovado, defendeu a dissertação em setembro de 2013 e tornou-se mestre em linguística. Não esperava chegar tão longe, mas ainda não era o fim do caminho: em 2014, conquistou com louvor uma das vagas no doutorado da mesma UFSC.

Fim da história? Ainda não. O próximo capítulo está para ser escrito. Dorival sonha com um doutorado-sanduíche em Lyon, na França. As conversações com a possível orientadora, em francês, via Skype, foram promissoras. Dorival não desperdiça sonhos.

Políticas Públicas e Meritocracia
Durante muito tempo, só os familiares e os amigos mais próximos conheciam esta história. Dorival não queria ser tratado como coitado, nem como herói. Até que na campanha eleitoral de 2014, quando as redes sociais fervilhavam de ódio e preconceito contra os programas sociais, ousou postar, em duas linhas:

“Eu trabalhava no lixão, hoje sou doutorando em linguística numa universidade federal, graças ao Bolsa Família”.

Foi o bastante para ter seu perfil no Facebook inundado por ofensas do tipo “Volta pro lixo, seu porco imundo”.

Assim como nunca entendeu por que algumas pessoas jogam livros no lixo, Dorival também desconhece a razão para tanto ódio às políticas públicas de redução das desigualdades e aos que delas se beneficiam para a conquista de direitos fundamentais.

Ele até hoje escuta gente dizendo que o Bolsa Família, o mais importante programa de transferência de renda do mundo, não passa de “bolsa esmola” e “fábrica de vagabundos”, e que as pessoas deveriam ser premiadas única e exclusivamente pelos seus méritos individuais (muitas vezes hereditários, diga-se de passagem). Nessas horas, Dorival procura ser o mais didático possível.

“Não existe meritocracia quando uma pessoa começa o dia disputando o café da manhã com os urubus e a outra, não”, ensina o mestre que saiu do lixão para recontar sua história. Com todos os méritos do mundo.

Não existe meritocracia quando uma pessoa começa o dia disputando o café da manhã com os urubus e a outra, não.

DORIVAL FILHO

Fonte: Portal Brasil - http://historiasdobrasil.gov.br/

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